quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Relato - Desocupação da Reitoria e Prisão Política

Ontem acordei as 5 horas da manhã, ouvindo os gritos de uma companheira : Eles estão aí! Vieram em muitos!
Levantei do puf onde eu dormia , meio atordoada. Eu imaginava lá fora alguns PMs e viaturas. Não tive medo, calejada dos atos de aumento de passagem, marchas da liberdade...Segui o fluxo das pessoas que procuravam uma saída do prédio, é sempre melhor ser preso sem estar sozinho... Comecei a ouvir o helicóptero e a achar que na verdade o que estava acontecendo as 5:10 na reitoria da USP estava longe de ser operado por algumas viaturas.
Subimos uma escadaria reclamando com o cara da comissão de segurança : Estamos sendo perseguidos e vamos subir, seu louco? Já era. Saimos por cima. Foi lá fora que me dei conta do realmente estava acontecendo.
Nos acusam de sermos dramáticos, anacrônicos...Pouco de mais dramático e anacrônico eu vi que aquela tropa inteira, de 500 policiais do choque, GOE, anti-terrorismo e sei la mais o que. Me perguntaram se eu senti medo...Tão cinematográfica foi a cena que me parecia vir de um filme. Sabe quando aquilo não está realmente acontecendo com você? PRO CHÃO PRO CHÃO.
De cacetetes em mãos, nos forçaram a sentar na grama, olhando para a parede. Andando de um lado para o outro com os olhos em cada movimento nosso. Assustando estudantes por qualquer gesto, mantendo-nos de cabeça baixa. Estava frio, mas o clima de terror que a polícia instalara era tal que muitos de nós ficavam receosos de se mover pra pegar um casaco. Ninguém fica confortável de se mover com uma espingarda apontada pra si e um carrasco fardado, que todos os dias espanca e assassina negros e pobres, e cujo único empecilho para fazer o mesmo com você - ao menos comigo que não sou rica, importante, nem coisa nenhuma, que tenho o nome sujo e me sustento com 700 reais - são frágeis câmeras e a ''opinião pública'' que virou sinônimo da mídia reacionária.
Acredito que o normal seria que levassem os presos à delegacia. Mas não. Quem acha que o requinte do terror é a dor física se engana. Nos levaram de volta pra dentro de uma reitoria escura e vazia, vazia não, com centenas de policiais armados e mais ninguém. Em fila, mãos visíveis, olhando pro chão. Chegamos ao saguão, nos sentaram no chão de frente para um vidro. Logo mais : Mulheres e homens separados pra revista. Outra fila. Outras cabeças baixas e palavras de ameaça.
A revista que não podia ser feita na frente dos nossos companheiros de luta, foi feita numa salinha escura, com 20 policiais fortemente armados cercando algumas meninas presas. Apenas duas policiais cuidavam da revista sob o olhar nojento dos 20. Abriram as bolsas, uma delas jogava tudo no chão após apalpar uma presa diante dos olhos dos policiais homens. Foi então que se tudo aquilo me parecera dramático e anacrônico, o clima 68 atingiu o ápice.
Começamos a ouvir fortes gritos de uma menina. Não sabíamos quem era, só sabíamos que devia estar sendo muito machucada. Algumas de nós - eu inclusa com bastante ênfase - começamos a pedir que nos dissessem o que estava acontecendo, quem era ela, o que faziam com ela. A resposta de um porco fardado : É só uma louca que entrou gritando e fazendo escândalo.
A louca que entrou gritando e fazendo escândalo parou de gritar. Não paramos no entanto de ouvir alguns sons. Tornei a perguntar da companheira, o que tinha sido feito dela? Foi então que a policial mulher do alto de sua truculencia vira e diz : Se não ficar quieta isso ai vai ser entre mim e você. - E eu, do alto da minha profunda falta de senso de perigo, viro e digo : VAMO AÍ ENTÃO...Mas ela voltou. Não vou citar nomes por segurança. Mas não é nada, nada agradável ver entrar a companheira que varou algumas horas com você na comissão de comunicação da ocupação, vermelha e aos prantos, em meio a uma crise de asma.
Foi pega sozinha. Dez policiais esfregaram seu rosto no chão, pisaram nela, bateram, e quando começamos a ouvir seus gritos, pasmem, a amordaçaram. Nós não somos anacrônicos, nós vivemos em tempos que começam a soar anacrônicos demais...
Os policiais faziam uma barreira de homens e escudos pra não vermos pela parede envidraçada o que acontecia lá fora. Vi alguns pedaços, nossos colegas do CRUSP que vieram em nossa defesa sendo perseguidos por bombas e pela cavalaria, na melhor das cenas de novela de época. O CRUSP foi conseguido as custas de muito sangue, eu tenho orgulho dos meus colegas que honraram sua história ontem de manhã.

Fomos conduzidas à delegacia num ônbius-viatura. Três policiais com seus trabucos na mão vigiavam as presas no corredor do ônibus. As cortinas eram pretas e foram todas fechadas quando entramos. Perguntamos onde estavamos indo, eles se recusaram a responder e nos repreendiam quando tentávamos ver o caminho. Perguntávamos se as armas eram de verdade ou de balas de borracha. Isso eles respondiam com um sorriso maldoso : São de verdade.
Chegamos...Fomos fichados...A princípio seria um termo circustancial seguido da liberdade. A delegada, com o perdão do termo, puta da vida, anunciou : vamos ter que manter vocês presos e indiciar..Ordens diretas do secretário de segurança. E quem disser que não somos presos políticos não tem a menor noção do que está dizendo. Eu e os outros 72 presos passamos o dia lá porque o secretário de Alckmin assim quis, simples. Era lá pelas 11 horas quando fomos informadas no ônibus : estávamos oficialmente presas por dano ao patrimônio público e desobediência. Seríamos separadas umas das outras transferidas pra presídios à noite.

Dai em diante viriam horas e mais horas, até tarde da noite. Ficamos presos em ônibus, debaixo do sol, só comemos pela solidariedade dos advogados e sindicatos. Nenhum policial nos perguntou se precisávamos de água ou comida. Um mais ''boa onda'' que conversava com as meninas presas, num clima bem demagógico intercalado com piadinhas machistas e autoritárias. Vez ou outra um cão de guarda que dizia : TODAS SENTADAS. QUIETAS SEM LEVANTAR - exercendo o sadismo típico de sua categoria.
No começo podíamos ficar alguns passos fora do ônibus, vigiadas por policiais com as mãos nas armas, banheiro livre etc. À medida que as horas corriam a coisa se endurecia. Banheiro só quando os policiais cismassem. Era proibido sair do ônibus. As visitas das mães se tornaram mais difíceis. E o ônibus virara mesmo uma cela. Não havia espaço para 70 presos a mais nas celas de fato. Nos propuseram uma sala para nos servir de cárcere.
Lá fora, no início da tarde, nossos camaradas, colegas e pais às centenas se manifestavam a nosso favor. A imprensa com todos os seus limites fotografava cada passo. Lá dentro os agressores da nossa companheira, longe dos olhos atentos das pessoas. Lá fora, a tropa de choque cercava nossos amigos, lá dentro não teríamos idéia do que acontecia e do que aconteceria conosco. Resolvemos permanecer nos ônibus enquanto durasse o ato e a presença intensa da mídia, pela nossa própria segurança. Mas por raiva também nos privaram da sala ou da cela oferecida após a saída do ato. Ficamos presos no ônibus até tarde da noite.
Os depoimentos foram demorados, lentos. As perguntas, das mais absurdas possíveis.
Coisas do tipo
- Você está arrependido?
- Você sabe indicar nomes de pessoas que participaram? (DEDURAGEM)
- ESSAS PESSOAS JÁ PARTICIPARAM DE OUTROS MOVIMENTOS REIVINDICATÓRIOS?
Entre umas outras dezenas de perguntas, TODAS nesse naipe. TODAS pedindo que cada estudante preso entregasse companheiros. Acontece, cara PM, que isso não responderemos nem em juízo.

Cabe dizer que me interrogatório foi feito na presença de um cara da polícia e um advogado. Como deve ser. Sem grosseria, nem me cogitaram antecedentes criminais e ficaram surpresos quando nas questões da vida pregressa, eu me bancava sozinha. O interrogatório de uma camarada, negra, foi feito na presença de 5 pessoas da polícia, sem que chamassem um advogado e dada como alguma obviedade os seus antecedentes criminais.
Sofremos essas coisas porque somos universitários, mas temos de dizer fora pm do mundo porque certamente sofrem muito mais os jovens negros em cada favela do país.

Eu creio que teria muito mais detalhes e absurdos pra contar, mas fico por aqui. Ainda bem uma lista ansiosa de pessoas me cobra por esse texto. Ainda bem temos camaradas, amigos, familiares atentos, que começam a perceber as correntes que os prendem pela via da repressão policial, do cerco da mídia e da artificial e suposta ''opinião pública''. Ainda bem temos estudantes do CRUSP que se lembram de quem são e combatem a cavalaria.
João Grandino Rodas enquadrou 3 maconheiros, prendeu 73 estudantes e agora vai ter de lidar com a ira de alguns milhares . Viva a greve na USP! FORA PM DO MUNDO! FIM DE TODOS OS PROCESSOS ADMINISTRATIVOS E CRIMINAIS!
Obrigada a todos os estudantes, funcionários, pais, advogados, trabalhadores que se mantiveram na luta pela nossa liberdade.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Carta do professor e juiz Jorge Luis Souto Maior em apoio à ocupação.

Ninguém está acima da lei. Mas, quem é ninguém? O que é a lei? Qual é a verdade?

por Jorge Luiz Souto Maior, prof. livre docente da Faculdade de Direito da USP

Para deslegitimar o ato de estudantes da USP, que se postaram contra a presença da polícia militar no campus universitário, o governador Geraldo Alckmin sentenciou: “Ninguém está acima da lei”, sugerindo que o ato dos estudantes seria fruto de uma tentativa de obter uma situação especial perante outros cidadãos pelo fato de serem estudantes. Aliás, na sequência, os debates na mídia se voltaram para este aspecto, sendo os estudantes acusados de estarem pretendendo se alijar do império da lei, que a todos atingem.

Muito precisa ser dito a respeito, no entanto.

Em primeiro lugar, a expressão, “Ninguém está acima da lei”, traduz um preceito republicano, pelo qual, historicamente, se fixou a conquista de que o poder pertence ao povo e que, portanto, o governante não detém o poder por si, mas em nome do povo, exercendo-o nos limites por leis, democraticamente, estatuídas. O “Ninguém está acima da lei” é uma conquista do povo em face dos governos autoritários. O “ninguém” da expressão, por conseguinte, é o governante, jamais o povo. Claro que nenhum do povo está acima da lei, mas a expressão não se destina a essa obviedade e sim a consignar algo mais relevante, advindo da luta republicana, isto é, do povo, para evitar a deturpação do poder.

Nesse sentido, não é dado ao governante usar o preceito contra atos de manifestação popular, pois é desses atos que se constroem, democraticamente, os valores que vão se expressar nas leis que limitarão, na sequencia, os atos dos governantes.

Dito de forma mais clara, a utilização do argumento da lei contra os atos populares é um ato anti-republicano, que favorece o disfarce do império da lei, ao desmonte da contestação popular aos valores que estejam abarcados em determinadas leis.

Foi isso, aliás, que se viu recentemente em torno do direito das pessoas se manifestarem, de forma organizada e pacífica, contra a lei que criminaliza o uso da maconha. Todos estão sob o império da lei, mas não pode haver obstáculos institucionalizados para a discussão pública da necessidade ou não de sua alteração.

A lei, portanto, não é ato de poder, não pertence ao governante. A lei deve ser fruto da vontade popular, fixada a partir de experiências democráticas, que tanto se estabelecem pelo meio institucionalizado da representação parlamentar quanto pelo livre pensar e pelas manifestações públicas espontâneas.

E, ademais, qual é a verdade da situação? A grande verdade é que os alunos da USP não estão querendo um tratamento especial diante da lei. Não estão pretendendo uma espécie da vácuo legal, para benefício pessoal. Para ser completamente, claro, não estão querendo fumar maconha no Campus sem serem incomodados pela lei. Querem, isto sim, manifestar, democraticamente, sua contrariedade à presença da PM no Campus universitário, não pelo fato de que a presença da polícia lhes obsta a prática de atos ilícitos, mas porque o ambiente es colar não é, por si, um caso de polícia.

Querem pôr em discussão, ademais, a legitimidade da autorização, dada pela atual Direção da Universidade, em permitir essa presença.

A questão da legitimidade trata-se de outro preceito relevante do Estado de Direito, pois a norma legal, para ser eficaz, precisa ser fixada por quem, efetivamente, tem o poder institucionalizado, pela própria ordem jurídica, para poder fazê-lo e, ainda, exercer esse poder em nome dos preceitos maiores da razão democrática.

Vejamos, alguém pode estar questionando o direito dos alunos de estarem ocupando o prédio da Administração da FFLCH, sob o argumento de que não estão, pela lei, autorizados a tanto. Imaginemos, no entanto, que a Direção da Unidade, tivesse concedido essa autorização. A questão, então, seria saber se quem deu autorização tinha a legitimidade para tanto e mais se os propósitos da autorização estavam, ou não, em conformidade com os preceitos jurídicos voltados à Administração Pública.

Pois bem, o que os alunos querem é discutir se a autorização para a Polícia Militar ocupar os espaços da Universidade foi legítima e quais os propósitos dessa autorização. Diz-se que a presença da Polícia Militar se deu para impedir furtos e, até, assassinatos, o que, infelizmente, foi refletido em fatos recentes no local. Mas, para bem além disso, a presença da Polícia Militar tem servido para inibir os atos democráticos de manifestação, que, ademais, são comuns em ambientes acadêmicos, envoltos em debates políticos e reivindicações estudantis e trabalhistas. Uma Universidade é, antes, um local experimental de manifestações livres de ideias, instrumentalizadas por atos políticos, para que as leis, que servirão à limitação dos atos dos nossos governantes, possam ser analisadas criticamente e aprimoradas por intermédio de práticas verdadeiramente democráticas.

A presença ostensiva da Polícia Militar causa constrangimentos a essas práticas, como, aliás, se verificou, recentemente, com a condução de vários servidores da Universidade à Delegacia de Polícia, em razão da realização de um ato de paralisação de natureza reivindicatória, o que lhes gerou, dentro da lógica de terror instaurada, a abertura de um Inquérito Administrativo que tem por propósito impingir-lhes a pena da perda do emprego por justa causa.

Dir-se-á que no evento que deu origem à manifestação dos alunos houve, de fato, a constatação da prática de um ilícito e que isso justificaria o ato policial. Mas, quantas não foram as abordagens que não geraram a mesma constatação? De todo modo, a questão é que os fins não justificam os meios ainda mais quando os fins vão muito além do que, simplesmente, evitar a prática de furtos, roubos, assassinatos e consumo de drogas no âmbito da Universidade, como se tem verificado em concreto.

Há um enorme “déficit” democrático na Universidade de São Paulo que de um tempo pra cá a comunidade acadêmica, integrada por professores, alunos e servidores, tem pretendido pôr em debate e foi, exatamente, esse avanço dessa experiência reivindicatória que motivou, em ato de represália, patrocinado pelo atual reitor, o advento da polícia militar no campus, sob a falácia da proteção da ordem jurídica.

A ocupação da Administração da FFLCH pelos alunos, ocorrida desde a última quinta-feira, não é um ato isolado, advindo de um fato determinado, fruto da busca frívola de se “fumar maconha” impunemente no campus. Fosse somente isso, o fato não merecia tanta repercussão. Trata-se, isso sim, do fruto da acumulação de experiências democráticas que se vêm intensificando no âmbito da Universidade desde 2005, embora convivendo, é verdade, com o trágico efeito do aumento das estratégias repressoras. Neste instante, o que deve impulsionar a todos, portanto, é a defesa da preservação dos mecanismos de diálogo e das práticas democráticas. Os alunos, ademais, ainda que o ato tenha tido um estopim, estão sendo objetivos em suas reivindicações: contra a precarização dos direitos dos trabalhadores; contra a privatização do ensino público; contra as estruturas de poder arcaicas e autoritárias da Universidade, regrada, ainda, por preceitos fixados na época da ditadura militar; pela realização de uma estatuinte; e contra a presença da Polícia Militar no Campus, que representa uma forma de opressão ao debate.

O ato dos alunos, portanto, é legítimo porque seus objetivos estão em perfeita harmonia com os objetivos traçados pela Constituição da República Federativa do Brasil, que institucionalizou um Estado Democrático de Direito Social e o fato de estarem ocupando um espaço público para tanto serve como demonstração da própria origem do conflito: a falta de espaços institucionalizados para o debate que querem travar.

A ocupação não é ato de delinquência, trata-se, meramente, da forma encontrada pelos alunos para expressar publicamente o conflito que existe entre os que querem democratizar a Universidade e os que se opõem a isso em nome de interesses que não precisam revelar quando se ancoram na cômoda defesa da “lei”.

São Paulo, 30 de outubro de 2011.