terça-feira, 24 de abril de 2012

Meu Sangue

Esse é um texto sobre homossexualidade, moro com um casal homossexual e por longas trocas de idéia e relações tão profundas, de sofrer e chorar junto cada um a sua opressão, quis escrever esse texto. As vezes eu gosto de contar a história de pessoas partindo das coisas, que tantas vezes nos subjugam, ou como quando somos vistos como elas. Acredito que que a lógica que a sociedade de classes nos impõe pode ser expressa não apenas pelo conteúdo de um texto, mas em sua forma.




Meu Sangue

Estas linhas são a história do meu sangue e de todas as coisas que todo um mundo sobre ele me tiveram a dizer.
Lembro-me da infância, quando ainda nossos olhos brilham sem razão, quando a perspectiva não nos pesa na cabeça, quando não mais que isso somos, um receptáculo dos sonhos dos outros. Nessa época, todos sonhavam com o meu sangue. Certa vez caído me cortei e algumas gotas vermelhas mancharam aquele prosaico uniforme de colégio, aquelas gotas nunca importaram, delas por muito tempo me esqueci. Não sabia que aquilo que então vertia de um pequeno arranhão eram também os sonhos dos outros. Derrama teu sangue pela pátria. Derrama teu sangue pelos teus. Faz verter o sangue daquele que te ofende. Sangre pelo amor de uma mulher.A um menino, como eu era, não se pergunta o que vai ser quando crescer, mais que isso, a quem afinal deverá o seu sangue? E aquelas gotinhas tímidas, nesta época eram afinal tão pouco minhas.
Cresci um dia e a uma mulher ou aos filhos eu jamais o devi. Não encaro como certo se escolhi, mas a um corpo masculino e todo o amor que lhe passei a ter, eu dediquei o meu sangue. Meu sangue. Tão meu. Aos dezoito anos a pátria me pediu para derramá-lo. A tarde cansativa me doera mais que o corte da infância, as horas perdidas e vazias sob os olhos de um coronéu que, cuidadosamente, como se vendia o gado ou se olhava os dentes num mercado de escravos, escolhia sacrificados num rito pagão, selecionava para a pátria de quem quereria verter o sangue. Abri a boca e lhe disse meu nome. Sua voz é voz de mulher. Minha voz. Minha. Eles, pela primeira vez se deram conta de que aquele líquido vazado no chão por sobre o qual o reflexo da luz demonstrava não um homem e seus sonhos, mas o peso dos quereres de um mundo, aquele especificamente, não lhes servia. Nunca quis assim vertê-lo de fato, mas pessoa alguma quer que lhe seja negado o mais infeliz e ingrato direito e dever dos homens : morrer ainda que não se queira.
No entanto quando não quis morrer e manchar o chão de vermelho, o quiseram eles. Não apenas o meu. Sete pauladas no crânio, dois murros no peito e nele também o pavor de um mundo e a dor de tantos. Caminhávamos por uma rua que naquela noite eles não caminhavam. As luzes amareladas e os neons, as estrelas na noite e o brilho orvalhado das gotas de chuva na calçada, a noite cheirava bem ao redor daqueles olhos. A rua pela qual eles caminhavam era nublada e seus olhos eram cegos. Sete pauladas no crânio e o brilho orvalhado nos paralelepípedos se tornou o brilho do nosso sangue derramado. Mas o sangue das sete pauladas não era o meu, que ainda pôde manter meu cérebro consciente e vivo enquanto via retirarem aquilo que dentro em breve eu poderia chamar de seu corpo. Aquilo.
Meu sangue, neste momento você quis tanto saltar para fora de mim! Encharcar as paredes de nosso lar com um tiro no mesmo lugar onde eles te feriram tanto? Não. Meu sangue, neste momento você quis caminhar por aqueles plásticos e ascéticos tubos para encontrar um dos únicos outros sangues pelos quais eu te verteria. Assim como o mundo, iguais quis nos separar, iguais separou o nossos sangues. Você tem voz de mulher. Você deve estar doente. Ele agora está morto, seu sangue já não caminha mais pelas veias vivas de seu corpo.
 Você foi tudo o que eu sou, o sangue almejado, negado, derramado, e outras que nada tem com o assunto, as lágrimas, foram tão derramadas porque para o mundo eu sou sangue e também o sou para mim. Mim. Eu. Eu posso existir sujeito enquanto aos olhos alheios sou uma tragédia anunciada? Aqueles de quem do sangue o mundo mais apropria são todos tragédias anunciadas. Da mancha vermelha do assassinato à menstruação ainda quente vazando pelo corpo e assinalando a servidão de toda uma vida. Eu gostaria de poder dedicar estas linhas a uma mente, uma alma, como queira a crença, mas eu a conheço tão pouco para fazê-lo...
Meu sangue, por que fui tão egoísta com você? Eu te verteria por tão poucos, ao passo que você sempre foi tão pouco meu. Percebi que é isso que todos querem de você, que querem de nós, de todos nós. Que ao que escorre na morte e não ao que anima os olhos temos de dedicar nossas palavras, nossas vidas. Hoje quando caminho nas ruas de mãos para o alto ordenando a revolução e todos os sonhos do mundo, me acusam de lutar por derramar o sangue alheio. Mas só eu sei o quanto eu quero que mais nenhuma linha de memórias verdadeiras seja escrita pela historia de um sangue: vertido, derramado, menstruado, morto ou vivo. Escrevamos mais nada que não a história de nossos sonhos.

Voltando a postar (ou rompendo o silêncio)

Devido a umas reflexões que andei fazendo na minha vida pessoal, resolvi voltar com esse blog com outro caráter. Colocar não mais apenas relatos da minha militância cotidiana, mas uma forma importante historicamente na minha vida de me expressar a respeito da opressão e da exploração. Digamos, seguramente, que eu só segurei várias barras pelo fato de poder me expressar pela escrita.
Ha algumas semanas uma companheira de luta minha, Camila Radwanski, se suicidou. E pela primeira vez essa tarefa que parecia tão individual, escrever para me expressar, ganhou a dimensão devida : entender tudo aquilo que se passa na subjetividade de cada mulher ou homem que lide com a opressão da sociedade capitalista como um aporte fundamental para um combate ideológico profundo contra um sistema que destroi vidas materialmente e subjetivamente. Nesse sentido, eu não tenho o direito de continuar mantendo em silêncio ou tornando individual esse meu combate.
Camila usava no seu profile do facebook a citação de que seu corpo era um campo de batalha. Não podemos mais permitir que essas batalhas se deem dentro de nossos corpos se somos tantos, que essas batalhas se dêem nas ruas e nas idéias. O nosso silêncio e a nossa subjetivação são trunfos do capitalismo contra nós.
Mas esse texto não é só sobre ela. Ha algum tempo eu refleti e escrevi um texto para minha organização sobre a subjetividade da mulher revolucionária. Nossa situação de fragmentadas pela contradição entre a escolha consciente de rumar nossas vidas, nos apropriando delas, na luta por um mundo sem exploração, e tudo aquilo que a irracionalidade e a anarquia do sistema capitalista impõe às nossas subjetividades. Lutamos pela propriedade legítima de nossas idéias, nossos corpos. Eu tenho uma história de opressão que prefiro não contar nessas linhas, isso me gerou medo, me gerou insegurança e uma quase certeza de sou incapaz de fazer qualquer coisa bem. Por isso tive, por muito tempo, medo e vergonha de fazer arte. Nesse momento da minha vida onde agora tão conscientemente me deparo com isso, percebo que afinal, a coisa mais revolucionária a ser feita sobre isso é me apropriar das minhas idéias e romper o silêncio.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Relato - Desocupação da Reitoria e Prisão Política

Ontem acordei as 5 horas da manhã, ouvindo os gritos de uma companheira : Eles estão aí! Vieram em muitos!
Levantei do puf onde eu dormia , meio atordoada. Eu imaginava lá fora alguns PMs e viaturas. Não tive medo, calejada dos atos de aumento de passagem, marchas da liberdade...Segui o fluxo das pessoas que procuravam uma saída do prédio, é sempre melhor ser preso sem estar sozinho... Comecei a ouvir o helicóptero e a achar que na verdade o que estava acontecendo as 5:10 na reitoria da USP estava longe de ser operado por algumas viaturas.
Subimos uma escadaria reclamando com o cara da comissão de segurança : Estamos sendo perseguidos e vamos subir, seu louco? Já era. Saimos por cima. Foi lá fora que me dei conta do realmente estava acontecendo.
Nos acusam de sermos dramáticos, anacrônicos...Pouco de mais dramático e anacrônico eu vi que aquela tropa inteira, de 500 policiais do choque, GOE, anti-terrorismo e sei la mais o que. Me perguntaram se eu senti medo...Tão cinematográfica foi a cena que me parecia vir de um filme. Sabe quando aquilo não está realmente acontecendo com você? PRO CHÃO PRO CHÃO.
De cacetetes em mãos, nos forçaram a sentar na grama, olhando para a parede. Andando de um lado para o outro com os olhos em cada movimento nosso. Assustando estudantes por qualquer gesto, mantendo-nos de cabeça baixa. Estava frio, mas o clima de terror que a polícia instalara era tal que muitos de nós ficavam receosos de se mover pra pegar um casaco. Ninguém fica confortável de se mover com uma espingarda apontada pra si e um carrasco fardado, que todos os dias espanca e assassina negros e pobres, e cujo único empecilho para fazer o mesmo com você - ao menos comigo que não sou rica, importante, nem coisa nenhuma, que tenho o nome sujo e me sustento com 700 reais - são frágeis câmeras e a ''opinião pública'' que virou sinônimo da mídia reacionária.
Acredito que o normal seria que levassem os presos à delegacia. Mas não. Quem acha que o requinte do terror é a dor física se engana. Nos levaram de volta pra dentro de uma reitoria escura e vazia, vazia não, com centenas de policiais armados e mais ninguém. Em fila, mãos visíveis, olhando pro chão. Chegamos ao saguão, nos sentaram no chão de frente para um vidro. Logo mais : Mulheres e homens separados pra revista. Outra fila. Outras cabeças baixas e palavras de ameaça.
A revista que não podia ser feita na frente dos nossos companheiros de luta, foi feita numa salinha escura, com 20 policiais fortemente armados cercando algumas meninas presas. Apenas duas policiais cuidavam da revista sob o olhar nojento dos 20. Abriram as bolsas, uma delas jogava tudo no chão após apalpar uma presa diante dos olhos dos policiais homens. Foi então que se tudo aquilo me parecera dramático e anacrônico, o clima 68 atingiu o ápice.
Começamos a ouvir fortes gritos de uma menina. Não sabíamos quem era, só sabíamos que devia estar sendo muito machucada. Algumas de nós - eu inclusa com bastante ênfase - começamos a pedir que nos dissessem o que estava acontecendo, quem era ela, o que faziam com ela. A resposta de um porco fardado : É só uma louca que entrou gritando e fazendo escândalo.
A louca que entrou gritando e fazendo escândalo parou de gritar. Não paramos no entanto de ouvir alguns sons. Tornei a perguntar da companheira, o que tinha sido feito dela? Foi então que a policial mulher do alto de sua truculencia vira e diz : Se não ficar quieta isso ai vai ser entre mim e você. - E eu, do alto da minha profunda falta de senso de perigo, viro e digo : VAMO AÍ ENTÃO...Mas ela voltou. Não vou citar nomes por segurança. Mas não é nada, nada agradável ver entrar a companheira que varou algumas horas com você na comissão de comunicação da ocupação, vermelha e aos prantos, em meio a uma crise de asma.
Foi pega sozinha. Dez policiais esfregaram seu rosto no chão, pisaram nela, bateram, e quando começamos a ouvir seus gritos, pasmem, a amordaçaram. Nós não somos anacrônicos, nós vivemos em tempos que começam a soar anacrônicos demais...
Os policiais faziam uma barreira de homens e escudos pra não vermos pela parede envidraçada o que acontecia lá fora. Vi alguns pedaços, nossos colegas do CRUSP que vieram em nossa defesa sendo perseguidos por bombas e pela cavalaria, na melhor das cenas de novela de época. O CRUSP foi conseguido as custas de muito sangue, eu tenho orgulho dos meus colegas que honraram sua história ontem de manhã.

Fomos conduzidas à delegacia num ônbius-viatura. Três policiais com seus trabucos na mão vigiavam as presas no corredor do ônibus. As cortinas eram pretas e foram todas fechadas quando entramos. Perguntamos onde estavamos indo, eles se recusaram a responder e nos repreendiam quando tentávamos ver o caminho. Perguntávamos se as armas eram de verdade ou de balas de borracha. Isso eles respondiam com um sorriso maldoso : São de verdade.
Chegamos...Fomos fichados...A princípio seria um termo circustancial seguido da liberdade. A delegada, com o perdão do termo, puta da vida, anunciou : vamos ter que manter vocês presos e indiciar..Ordens diretas do secretário de segurança. E quem disser que não somos presos políticos não tem a menor noção do que está dizendo. Eu e os outros 72 presos passamos o dia lá porque o secretário de Alckmin assim quis, simples. Era lá pelas 11 horas quando fomos informadas no ônibus : estávamos oficialmente presas por dano ao patrimônio público e desobediência. Seríamos separadas umas das outras transferidas pra presídios à noite.

Dai em diante viriam horas e mais horas, até tarde da noite. Ficamos presos em ônibus, debaixo do sol, só comemos pela solidariedade dos advogados e sindicatos. Nenhum policial nos perguntou se precisávamos de água ou comida. Um mais ''boa onda'' que conversava com as meninas presas, num clima bem demagógico intercalado com piadinhas machistas e autoritárias. Vez ou outra um cão de guarda que dizia : TODAS SENTADAS. QUIETAS SEM LEVANTAR - exercendo o sadismo típico de sua categoria.
No começo podíamos ficar alguns passos fora do ônibus, vigiadas por policiais com as mãos nas armas, banheiro livre etc. À medida que as horas corriam a coisa se endurecia. Banheiro só quando os policiais cismassem. Era proibido sair do ônibus. As visitas das mães se tornaram mais difíceis. E o ônibus virara mesmo uma cela. Não havia espaço para 70 presos a mais nas celas de fato. Nos propuseram uma sala para nos servir de cárcere.
Lá fora, no início da tarde, nossos camaradas, colegas e pais às centenas se manifestavam a nosso favor. A imprensa com todos os seus limites fotografava cada passo. Lá dentro os agressores da nossa companheira, longe dos olhos atentos das pessoas. Lá fora, a tropa de choque cercava nossos amigos, lá dentro não teríamos idéia do que acontecia e do que aconteceria conosco. Resolvemos permanecer nos ônibus enquanto durasse o ato e a presença intensa da mídia, pela nossa própria segurança. Mas por raiva também nos privaram da sala ou da cela oferecida após a saída do ato. Ficamos presos no ônibus até tarde da noite.
Os depoimentos foram demorados, lentos. As perguntas, das mais absurdas possíveis.
Coisas do tipo
- Você está arrependido?
- Você sabe indicar nomes de pessoas que participaram? (DEDURAGEM)
- ESSAS PESSOAS JÁ PARTICIPARAM DE OUTROS MOVIMENTOS REIVINDICATÓRIOS?
Entre umas outras dezenas de perguntas, TODAS nesse naipe. TODAS pedindo que cada estudante preso entregasse companheiros. Acontece, cara PM, que isso não responderemos nem em juízo.

Cabe dizer que me interrogatório foi feito na presença de um cara da polícia e um advogado. Como deve ser. Sem grosseria, nem me cogitaram antecedentes criminais e ficaram surpresos quando nas questões da vida pregressa, eu me bancava sozinha. O interrogatório de uma camarada, negra, foi feito na presença de 5 pessoas da polícia, sem que chamassem um advogado e dada como alguma obviedade os seus antecedentes criminais.
Sofremos essas coisas porque somos universitários, mas temos de dizer fora pm do mundo porque certamente sofrem muito mais os jovens negros em cada favela do país.

Eu creio que teria muito mais detalhes e absurdos pra contar, mas fico por aqui. Ainda bem uma lista ansiosa de pessoas me cobra por esse texto. Ainda bem temos camaradas, amigos, familiares atentos, que começam a perceber as correntes que os prendem pela via da repressão policial, do cerco da mídia e da artificial e suposta ''opinião pública''. Ainda bem temos estudantes do CRUSP que se lembram de quem são e combatem a cavalaria.
João Grandino Rodas enquadrou 3 maconheiros, prendeu 73 estudantes e agora vai ter de lidar com a ira de alguns milhares . Viva a greve na USP! FORA PM DO MUNDO! FIM DE TODOS OS PROCESSOS ADMINISTRATIVOS E CRIMINAIS!
Obrigada a todos os estudantes, funcionários, pais, advogados, trabalhadores que se mantiveram na luta pela nossa liberdade.

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Carta do professor e juiz Jorge Luis Souto Maior em apoio à ocupação.

Ninguém está acima da lei. Mas, quem é ninguém? O que é a lei? Qual é a verdade?

por Jorge Luiz Souto Maior, prof. livre docente da Faculdade de Direito da USP

Para deslegitimar o ato de estudantes da USP, que se postaram contra a presença da polícia militar no campus universitário, o governador Geraldo Alckmin sentenciou: “Ninguém está acima da lei”, sugerindo que o ato dos estudantes seria fruto de uma tentativa de obter uma situação especial perante outros cidadãos pelo fato de serem estudantes. Aliás, na sequência, os debates na mídia se voltaram para este aspecto, sendo os estudantes acusados de estarem pretendendo se alijar do império da lei, que a todos atingem.

Muito precisa ser dito a respeito, no entanto.

Em primeiro lugar, a expressão, “Ninguém está acima da lei”, traduz um preceito republicano, pelo qual, historicamente, se fixou a conquista de que o poder pertence ao povo e que, portanto, o governante não detém o poder por si, mas em nome do povo, exercendo-o nos limites por leis, democraticamente, estatuídas. O “Ninguém está acima da lei” é uma conquista do povo em face dos governos autoritários. O “ninguém” da expressão, por conseguinte, é o governante, jamais o povo. Claro que nenhum do povo está acima da lei, mas a expressão não se destina a essa obviedade e sim a consignar algo mais relevante, advindo da luta republicana, isto é, do povo, para evitar a deturpação do poder.

Nesse sentido, não é dado ao governante usar o preceito contra atos de manifestação popular, pois é desses atos que se constroem, democraticamente, os valores que vão se expressar nas leis que limitarão, na sequencia, os atos dos governantes.

Dito de forma mais clara, a utilização do argumento da lei contra os atos populares é um ato anti-republicano, que favorece o disfarce do império da lei, ao desmonte da contestação popular aos valores que estejam abarcados em determinadas leis.

Foi isso, aliás, que se viu recentemente em torno do direito das pessoas se manifestarem, de forma organizada e pacífica, contra a lei que criminaliza o uso da maconha. Todos estão sob o império da lei, mas não pode haver obstáculos institucionalizados para a discussão pública da necessidade ou não de sua alteração.

A lei, portanto, não é ato de poder, não pertence ao governante. A lei deve ser fruto da vontade popular, fixada a partir de experiências democráticas, que tanto se estabelecem pelo meio institucionalizado da representação parlamentar quanto pelo livre pensar e pelas manifestações públicas espontâneas.

E, ademais, qual é a verdade da situação? A grande verdade é que os alunos da USP não estão querendo um tratamento especial diante da lei. Não estão pretendendo uma espécie da vácuo legal, para benefício pessoal. Para ser completamente, claro, não estão querendo fumar maconha no Campus sem serem incomodados pela lei. Querem, isto sim, manifestar, democraticamente, sua contrariedade à presença da PM no Campus universitário, não pelo fato de que a presença da polícia lhes obsta a prática de atos ilícitos, mas porque o ambiente es colar não é, por si, um caso de polícia.

Querem pôr em discussão, ademais, a legitimidade da autorização, dada pela atual Direção da Universidade, em permitir essa presença.

A questão da legitimidade trata-se de outro preceito relevante do Estado de Direito, pois a norma legal, para ser eficaz, precisa ser fixada por quem, efetivamente, tem o poder institucionalizado, pela própria ordem jurídica, para poder fazê-lo e, ainda, exercer esse poder em nome dos preceitos maiores da razão democrática.

Vejamos, alguém pode estar questionando o direito dos alunos de estarem ocupando o prédio da Administração da FFLCH, sob o argumento de que não estão, pela lei, autorizados a tanto. Imaginemos, no entanto, que a Direção da Unidade, tivesse concedido essa autorização. A questão, então, seria saber se quem deu autorização tinha a legitimidade para tanto e mais se os propósitos da autorização estavam, ou não, em conformidade com os preceitos jurídicos voltados à Administração Pública.

Pois bem, o que os alunos querem é discutir se a autorização para a Polícia Militar ocupar os espaços da Universidade foi legítima e quais os propósitos dessa autorização. Diz-se que a presença da Polícia Militar se deu para impedir furtos e, até, assassinatos, o que, infelizmente, foi refletido em fatos recentes no local. Mas, para bem além disso, a presença da Polícia Militar tem servido para inibir os atos democráticos de manifestação, que, ademais, são comuns em ambientes acadêmicos, envoltos em debates políticos e reivindicações estudantis e trabalhistas. Uma Universidade é, antes, um local experimental de manifestações livres de ideias, instrumentalizadas por atos políticos, para que as leis, que servirão à limitação dos atos dos nossos governantes, possam ser analisadas criticamente e aprimoradas por intermédio de práticas verdadeiramente democráticas.

A presença ostensiva da Polícia Militar causa constrangimentos a essas práticas, como, aliás, se verificou, recentemente, com a condução de vários servidores da Universidade à Delegacia de Polícia, em razão da realização de um ato de paralisação de natureza reivindicatória, o que lhes gerou, dentro da lógica de terror instaurada, a abertura de um Inquérito Administrativo que tem por propósito impingir-lhes a pena da perda do emprego por justa causa.

Dir-se-á que no evento que deu origem à manifestação dos alunos houve, de fato, a constatação da prática de um ilícito e que isso justificaria o ato policial. Mas, quantas não foram as abordagens que não geraram a mesma constatação? De todo modo, a questão é que os fins não justificam os meios ainda mais quando os fins vão muito além do que, simplesmente, evitar a prática de furtos, roubos, assassinatos e consumo de drogas no âmbito da Universidade, como se tem verificado em concreto.

Há um enorme “déficit” democrático na Universidade de São Paulo que de um tempo pra cá a comunidade acadêmica, integrada por professores, alunos e servidores, tem pretendido pôr em debate e foi, exatamente, esse avanço dessa experiência reivindicatória que motivou, em ato de represália, patrocinado pelo atual reitor, o advento da polícia militar no campus, sob a falácia da proteção da ordem jurídica.

A ocupação da Administração da FFLCH pelos alunos, ocorrida desde a última quinta-feira, não é um ato isolado, advindo de um fato determinado, fruto da busca frívola de se “fumar maconha” impunemente no campus. Fosse somente isso, o fato não merecia tanta repercussão. Trata-se, isso sim, do fruto da acumulação de experiências democráticas que se vêm intensificando no âmbito da Universidade desde 2005, embora convivendo, é verdade, com o trágico efeito do aumento das estratégias repressoras. Neste instante, o que deve impulsionar a todos, portanto, é a defesa da preservação dos mecanismos de diálogo e das práticas democráticas. Os alunos, ademais, ainda que o ato tenha tido um estopim, estão sendo objetivos em suas reivindicações: contra a precarização dos direitos dos trabalhadores; contra a privatização do ensino público; contra as estruturas de poder arcaicas e autoritárias da Universidade, regrada, ainda, por preceitos fixados na época da ditadura militar; pela realização de uma estatuinte; e contra a presença da Polícia Militar no Campus, que representa uma forma de opressão ao debate.

O ato dos alunos, portanto, é legítimo porque seus objetivos estão em perfeita harmonia com os objetivos traçados pela Constituição da República Federativa do Brasil, que institucionalizou um Estado Democrático de Direito Social e o fato de estarem ocupando um espaço público para tanto serve como demonstração da própria origem do conflito: a falta de espaços institucionalizados para o debate que querem travar.

A ocupação não é ato de delinquência, trata-se, meramente, da forma encontrada pelos alunos para expressar publicamente o conflito que existe entre os que querem democratizar a Universidade e os que se opõem a isso em nome de interesses que não precisam revelar quando se ancoram na cômoda defesa da “lei”.

São Paulo, 30 de outubro de 2011.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Uma Questão de Pretexto

Já prorrogava em algum tempo a necessidade de criar um blog. Várias idéias de textos e assuntos  me ocorriam, mas na que me animasse o suficiente pra ter esse trabalho todo. Já tive outros blogs, com outros propósitos, mas ja há um ano andava parada com relação a isso.
Estudantes defendem uma universidade
distinta e não ''fumar maconha em paz''. Só ver
o que está escrito.
No último dia 27, no entanto, se o que aconteceu com a invasão da Polícia Militar à FFLCH, entrando nos corredores dos prédios, jogando bombas, ferindo estudantes - sim, ao contrário do que divulga essa, com o perdão da ironia, tão idônea instituição - houveram muitos de nós feridos, não me motivasse a abrir um espaço na net pra dizer algumas palavras por fora do cerco ideológico que a imprensa tem feito, de fato, pensar em ter um blog não serviria de nada.

O que vou escrever não são pronunciamentos do movimento, embora a gestão do DCE da USP ignore esse fato, quem fala pelo movimento é a comissão de comunicação. Eu estou nela, mas venho aqui colocar algumas palavras bastante pessoais, entendam assim, muito pessoais aliás seriam se não fossem tão inelutavelmente políticas.



Braço de um amigo. A polícia e a imprensa
dizem que não ha estudantes feridos
 A polícia esteve 30 anos fora da Universidade de São Paulo, não esteve no entanto ausente por 30, nem 10, nem por 1 segundo de cada espaço para fora dos muros da USP. Não dormiu, nos últimos 200 anos, uma (m) unica (o) negra (o) pobre sem ter nas costas o fardo de ter sua casa revirada, seus parentes espancados e a pendência de uma acusação qualquer que é tão dinâmica e mutável que é provável que não saibamos elencar todas as razões do genocídio do povo negro que se estenderam pela nossa história.Escravidão, vacina...tráfico de drogas..
A história da polícia no Brasil é a história, necessariamente, da repressão política e do genocídio ao povo negro.
O que tem afinal esses jovens caricatos, iguaizinhos aos do Tropa de Elite, ''que enfrentam a polícia por maconha'', com as centenas assassinadas por ano pela polícia militar que vem, de cara lavada, nos impor a ordem? "Vocês financiam o tráfico'' diria a direita mais caricata e abjeta. Não.

O que temos nós, estudantes da USP, no momento em comum com o genocídio do povo negro é uma questão de pretexto, bastante contraditória.
Uma questão de pretexto, primeiramente porque é dessa mesma razão amplamente difundida para o controle social da população das favelas - as drogas, o crime, a violência - que provem a razão ditada para que se coloque a polícia que reconhecidamente está a serviço do poder estatal dentro de um espaço, ainda que com todas as contradições que carrega, de gravidade para a política no país. Pretexto para impor controle também ao corpo da juventude por uma injustificável proibição da maconha.

O espaço onde centenas de jovens organizados em correntes políticas discutem se querem reforma ou revolução, onde não por acaso se situa um dos únicos sindicatos no país que se coloca consequentemente contra a terceirização e contra o corporativismo do regime sindical brasileiro comandado pelas burocracias governistas e patronais.
Onde mais de 500 processos contra estudantes existem, o PROADE demite funcionários públicos sem justa causa. Onde  a Guarda Universitária agride trabalhadoras terceirizadas na luta por salários e essa mesma guarda assedia moradores do CRUSP, na qual estudantes são presos por ''olhar feio'' para um policial (sim , isso aconteceu).

Nessa mesma USP, onde no início do ano, um estudante negro - Samuel -  morreu por negligência da universidade que lhe recusou uma ambulância, jogado na praça do relógio. Meses depois o que resta dele é o silêncio da USP, da mídia, da opinião pública. Nessa mesma USP morreu Felipe , no estacionamento da FEA, meses depois, o resta dele são unidades móveis, camburões, balas e gás. Sou contra o populismo ingênuo de dizer que a morte de Samuel é mais criminosa que a de Felipe. Felipe também foi assassinado pela USP, pelo elitismo,pelo projeto de educação da burguesia. Pela instituição que fecha suas portas à grande maioria da população, a USP de ruas escuras e desertas, tão desertas porque ninguém que não os filhos da elite, minoritária, tem o direito de freqüentá-las. Criminosa, tão criminosa porque quem empunhou a arma que matou Felipe nunca pode empunhar um livro tal como fizeram os estudantes da FFLCH contra a polícia no dia 27, caso tentasse, mal lhe diria a Fuvest : você não tem mérito, não serve para a universidade.
O problema é que nós, maconheiros terríveis e sindicalistas vagabundos, sabemos disso e agora o que deve ser dito, tal qual querem a reitoria e o governo do estado é : a USP é uma universidade de excelência.
Por uma questão de pretexto, naquele 27 de outubro, quebramos nosso silêncio. Não sei o nome dos estudantes que foram presos com maconha, não os conheço, não fiz, desde aquele dia, qualquer esforço para conhecê-los e sei que posso ser processada por quinta à noite e talvez eu sofra a repressão , podem pensar,  sem saber o nome das pessoas que defendi. Mas eu sei o quem são pessoas que de fato, nós todos defendemos e continuaremos defendendo até o fim.

Quem nós defendemos são todos os nossos colegas que são abordados por olhar feio pra PM e são presos dentro de espaços estudantis, são todos os trabalhadores que estão sendo revistados todos os dias, são os jovens da favela São Remo, do lado da USP, que apanham da polícia por entrar na USP pra empinar pipa. São sim as centenas de assassinados pela PM fora dos muros da universidade, são as mulheres ridicularizadas quando dão queixa de agressão, são os negros barrados nas portas dos bancos,são os jovens mortos com tiro na nuca e de corpo incendiado pela defesa de uma loja, um banco, um shopping. Somos todos nós que seremos reprimidos porque quebramos alguns carros e portas, porque a polícia não serve para nós, para os homens, ela serve para as coisas.
A luta, ao contrário do que diz a imprensa que postou apenas as fotos dos policiais de braços cruzados recebendo cavaletes na cabeça, não é pela maconha na USP. A luta é uma luta decidida contra a Polícia nas ruas da USP, das favelas, do mundo.

Por isso, dizer que é um problema da USP, dos estudantes, da ''ilha'' elitista, é mais que ledo engano, é uma falácia consciente da mesma imprensa que em Abril noticiou a aliança desses mesmos estudantes com as trabalhadoras da limpeza, negras e em grande maioria moradoras da São Remo, contra o projeto privatista de universidade e precarização do trabalho. Fora polícia justamente porque não queremos que a USP seja uma ilha de onde a maior parte da população segue barrada, antes por guaritas de guardas universitários e vigias, agora por camburões.
Na minha opinião, nosso movimento tem o dever de transcender que a nossa ligação com o povo pobre e com os trabalhadores seja uma mera questão de pretexto para repressão, para a calúnia e para a privatização da universidade usado pelo governo e pelo braço armado do estado.