Meu Sangue
Estas linhas são a história do meu sangue e de todas as coisas que todo um mundo sobre ele me tiveram a dizer.
Lembro-me da infância, quando ainda nossos olhos brilham sem razão, quando a perspectiva não nos pesa na cabeça, quando não mais que isso somos, um receptáculo dos sonhos dos outros. Nessa época, todos sonhavam com o meu sangue. Certa vez caído me cortei e algumas gotas vermelhas mancharam aquele prosaico uniforme de colégio, aquelas gotas nunca importaram, delas por muito tempo me esqueci. Não sabia que aquilo que então vertia de um pequeno arranhão eram também os sonhos dos outros. Derrama teu sangue pela pátria. Derrama teu sangue pelos teus. Faz verter o sangue daquele que te ofende. Sangre pelo amor de uma mulher.A um menino, como eu era, não se pergunta o que vai ser quando crescer, mais que isso, a quem afinal deverá o seu sangue? E aquelas gotinhas tímidas, nesta época eram afinal tão pouco minhas.
Cresci um dia e a uma mulher ou aos filhos eu jamais o devi. Não encaro como certo se escolhi, mas a um corpo masculino e todo o amor que lhe passei a ter, eu dediquei o meu sangue. Meu sangue. Tão meu. Aos dezoito anos a pátria me pediu para derramá-lo. A tarde cansativa me doera mais que o corte da infância, as horas perdidas e vazias sob os olhos de um coronéu que, cuidadosamente, como se vendia o gado ou se olhava os dentes num mercado de escravos, escolhia sacrificados num rito pagão, selecionava para a pátria de quem quereria verter o sangue. Abri a boca e lhe disse meu nome. Sua voz é voz de mulher. Minha voz. Minha. Eles, pela primeira vez se deram conta de que aquele líquido vazado no chão por sobre o qual o reflexo da luz demonstrava não um homem e seus sonhos, mas o peso dos quereres de um mundo, aquele especificamente, não lhes servia. Nunca quis assim vertê-lo de fato, mas pessoa alguma quer que lhe seja negado o mais infeliz e ingrato direito e dever dos homens : morrer ainda que não se queira.
No entanto quando não quis morrer e manchar o chão de vermelho, o quiseram eles. Não apenas o meu. Sete pauladas no crânio, dois murros no peito e nele também o pavor de um mundo e a dor de tantos. Caminhávamos por uma rua que naquela noite eles não caminhavam. As luzes amareladas e os neons, as estrelas na noite e o brilho orvalhado das gotas de chuva na calçada, a noite cheirava bem ao redor daqueles olhos. A rua pela qual eles caminhavam era nublada e seus olhos eram cegos. Sete pauladas no crânio e o brilho orvalhado nos paralelepípedos se tornou o brilho do nosso sangue derramado. Mas o sangue das sete pauladas não era o meu, que ainda pôde manter meu cérebro consciente e vivo enquanto via retirarem aquilo que dentro em breve eu poderia chamar de seu corpo. Aquilo.
Meu sangue, neste momento você quis tanto saltar para fora de mim! Encharcar as paredes de nosso lar com um tiro no mesmo lugar onde eles te feriram tanto? Não. Meu sangue, neste momento você quis caminhar por aqueles plásticos e ascéticos tubos para encontrar um dos únicos outros sangues pelos quais eu te verteria. Assim como o mundo, iguais quis nos separar, iguais separou o nossos sangues. Você tem voz de mulher. Você deve estar doente. Ele agora está morto, seu sangue já não caminha mais pelas veias vivas de seu corpo.
Você foi tudo o que eu sou, o sangue almejado, negado, derramado, e outras que nada tem com o assunto, as lágrimas, foram tão derramadas porque para o mundo eu sou sangue e também o sou para mim. Mim. Eu. Eu posso existir sujeito enquanto aos olhos alheios sou uma tragédia anunciada? Aqueles de quem do sangue o mundo mais apropria são todos tragédias anunciadas. Da mancha vermelha do assassinato à menstruação ainda quente vazando pelo corpo e assinalando a servidão de toda uma vida. Eu gostaria de poder dedicar estas linhas a uma mente, uma alma, como queira a crença, mas eu a conheço tão pouco para fazê-lo...
Meu sangue, por que fui tão egoísta com você? Eu te verteria por tão poucos, ao passo que você sempre foi tão pouco meu. Percebi que é isso que todos querem de você, que querem de nós, de todos nós. Que ao que escorre na morte e não ao que anima os olhos temos de dedicar nossas palavras, nossas vidas. Hoje quando caminho nas ruas de mãos para o alto ordenando a revolução e todos os sonhos do mundo, me acusam de lutar por derramar o sangue alheio. Mas só eu sei o quanto eu quero que mais nenhuma linha de memórias verdadeiras seja escrita pela historia de um sangue: vertido, derramado, menstruado, morto ou vivo. Escrevamos mais nada que não a história de nossos sonhos.